Lixo metonímico - Pasquale Cipro Neto Um belo dia, na aula de gramática ou de literatura, estudam-se as figuras de linguagem. O que se vê, em geral, é um amontoado de nomes, quase todos "esquipáticos", como diria Drummond.
O professor se descabela para que o aluno decore o maior número possível de nomes. O resultado é catastrófico.
O aluno precisa entender o valor das figuras no texto, no contexto. No belo filme "O Carteiro e o Poeta", há uma inesquecível aula sobre metáfora. Daquele jeito, quem é que não consegue entender o que é metáfora?
Mestre João Alexandre Barbosa, crítico literário, contou uma deliciosa história num debate de que participamos na PUC de São Paulo.
Uma aluna reclamou do tamanho dos livros que precisava ler. Pediu ao mestre que lhe indicasse um importante, mas pequeno, minúsculo.
Depois de pensar, Barbosa lhe recomendou "A metamorfose", de Franz Kafka, obra-prima que se lê em duas horas.
Dias depois, a moça disse ao professor que não leria o livro até o fim. "Por quê?", perguntou Barbosa. "Porque ninguém vira barata", respondeu a concreta criatura.
O que seria do mundo se tudo fosse literal? Cruz-credo!
Quem nunca disse que tal pessoa é uma flor (metáfora)? Que já disse tal coisa mil vezes (hipérbole)? Que se cortou com gilete (metonímia)?
Metonímia? Belo palavrão. Gilete é marca. O nome do produto é lâmina. Coloca-se a marca no lugar do nome do produto: metonímia.
"A mão que toca o violão, se for preciso, vai à guerra", diz a letra de "Viola Enluarada", de Marcos e Paulo Sérgio Valle.
Mão toca violão? Não. Quem toca é a pessoa. Usa-se mão no lugar de pessoa: metonímia.
Creio que já foi possível deduzir que a metonímia se baseia na substituição de um nome por outro que tenha com o primeiro uma das seguintes relações: marca/produto, parte/todo, autor/obra ("Sempre leio Drummond"), continente/conteúdo ("Tomei dois copos de vinho") etc.
Pois bem. Quando a polícia de São Paulo apreendeu a agenda de Tânia de Paula, secretária e namorada do vereador Vicente Viscome, foi possível ler -entre tantas maravilhas- este trecho: "Vale a pena lembrar que o Vicente não me deu o lixo de fevereiro".
Ato falho? Quem sabe inconscientemente Tânia tenha se valido de um dos casos de metonímia: causa/efeito. A coleta de lixo gerou propina, dinheiro. Tânia escreveu "lixo" no lugar de "dinheiro do lixo".
Para muitos brasileiros, felizmente, a metonímia ainda é outra, também baseada na relação causa/efeito: "Ganhar o pão com suor". É isso.
1. Qual a opinião de Cipro Neto sobre a forma como se ensinam as figuras de linguagem? Como se deveria ensinar?
2. Que figura de linguagem o autor empregou, ao se referir à aluna como “concreta criatura”? O que significa essa expressão? *
3. No texto, o autor dá exemplos do uso das figuras na linguagem coloquial para mostrar que elas estão incorporadas à língua, no dia a dia. Dê exemplos de cada figura citada no texto, usada na fala popular. Atenção: não é para transcrever as que o autor utilizou no texto, mas identificar em seu cotidiano.
*4. Explique a comparação que o autor faz entre as metonímias, “o lixo de fevereiro” e “ganhar o pão com suor ”